Ferimento por Arma de Fogo do Abdome: uma mudança de paradigma
- Diego Adão
- 13 de dez. de 2024
- 5 min de leitura
Manejo do Ferimento por Arma de Fogo no Abdome: Estratégias Práticas e Baseadas em Evidências
Os ferimentos por arma de fogo (FAF) no abdome representam um dos maiores desafios para os cirurgiões de trauma. A decisão rápida e precisa entre condutas operatórias ou não operatórias pode determinar a sobrevivência do paciente e impactar significativamente na recuperação.
Este artigo aborda, com base em literatura científica e experiência prática, as principais etapas do manejo de FAF abdominal, considerando o contexto hospitalar e os avanços tecnológicos na medicina diagnóstica.
Introdução ao Manejo de Ferimentos Abdominais
Os FAF abdominais têm uma taxa de mortalidade que varia entre 10% e 30%, dependendo da extensão das lesões e do acesso precoce ao atendimento especializado. A maior complexidade está na variedade de estruturas que podem ser atingidas, como alças intestinais, grandes vasos, fígado, baço e estruturas retroperitoneais.
Apesar de avanços na abordagem não operatória, a laparotomia exploradora ainda é frequentemente indicada, especialmente em pacientes com sinais de instabilidade hemodinâmica.
Estudos recentes destacam que o uso de tomografia computadorizada (TC) reduziu as taxas de laparotomias não terapêuticas de 20% para menos de 5%, demonstrando o impacto positivo do planejamento pré-operatório.
Avaliação Inicial: Protocolos e Estratégias
A abordagem inicial dos pacientes vítimas de FAF abdominal segue os princípios do protocolo ABCDE do ATLS (AdvancedTrauma Life Support). Vale ressaltar que, especificamente nesses casos, o cirurgião deve considerar uma abordagem que priorize o controle precoce da hemorragia e a reposição volêmica. Essa abordagem CAB - em vez do ABC tradicional do ATLS - tem demonstrado resultados promissores nos estudos mais atuais.
Exame Físico e Sinais de Alarme
- Inspeção: Identificação de pontos de entrada e saída. O trajeto presumido ajuda a estimar estruturas lesadas.
- Palpação: Abdômen rígido ou sensível à palpação sugere peritonite.
- e-FAST (Focused Assessment with Sonography for Trauma): Identificação de líquido livre na cavidade abdominal com sensibilidade de 75-85% em hemoperitônio significativos.
Diagnóstico Laboratorial
Exames laboratoriais básicos incluem hemograma completo, gasometria arterial e lactato sérico. O aumento de lactato é um marcador indireto de hipoperfusão e pode indicar necessidade de intervenção cirúrgica precoce.
O Papel Fundamental da Tomografia Computadorizada
Talvez a principal mudança de paradigmas foi a inclusão da tomografia computadorizada na avaliação dos ferimentos por arma de fogo no abdome. Há alguns anos atrás, a realização desse exame em pacientes com FAF abdominal era considerada uma heresia. Atualmente, essa concepção tem mudado.
A tomografia computadorizada é o principal exame para pacientes estáveis com FAF abdominal. Estudos mostram que a TC tem sensibilidade acima de 95% para detectar lesões de vísceras ocas e próximas de 100% para lesões retroperitoneais e de vísceras sólidas.
Protocolos de TC Otimizada
- Uso de contraste intravenoso: Realização de uma única fase portal prolongada é suficiente em casos de trauma, evitando múltiplas aquisições e diminuindo o tempo do exame.
- Reconstruções tridimensionais: Melhoram a avaliação do trajeto do projétil e facilitam o planejamento cirúrgico.
- Software de redução de artefatos: Minimiza os artefatos causados por fragmentos metálicos, otimizando a identificação de estruturas adjacentes.
A TC é especialmente útil para identificar lesões retroperitoneais e determinar o manejo de hematomas em zonas específicas, permitindo abordagens individualizadas.
Indicações de Laparotomia: Quando Operar?
A laparotomia exploradora é indicada em situações de:
- Instabilidade hemodinâmica: Choque grau III ou IV com suspeita de sangramento intra-abdominal.
- Peritonite: Abdômen rígido e dor intensa.
- Evidência de hemorragia ativa: Identificada por exames de imagem ou sinais clínicos.
Abordagem em Pacientes Estáveis
Pacientes estáveis podem ser manejados de forma não operatória em casos de:
- Lesões hepáticas ou esplênicas controladas: Sem hemorragia ativa.
- Hematomas retroperitoneais estáveis: Em zona 2 (flancos) ou zona 3 (pelve), sem hemorragia ativa ou lesão de grandes vasos.
Um estudo publicado no Annals of Surgery (2022) mostrou que o manejo não operatório em lesões hepáticas controladas teve sucesso em 87% dos casos, com uma taxa de complicações significativamente menor em comparação com laparotomias.
Tratamento de Lesões Específicas
1. Lesões de Alça Intestinal e Estômago
- Lesões menores (<25% da circunferência) podem ser suturadas com Prolene, Vicryl ou PDS 3-0 ou 4-0.
- Lesões maiores (>50% da circunferência) ou com comprometimento vascular costumam exigir ressecção. Atualmente, considera-se que a anastomose é uma opção segura em pacientes hemodinamicamente estáveis.
- Em contextos de controle de danos, as alças podem ser sepultadas após a ressecção do segmento. Na reabordagem, pode-se optar pela anastomose ou pela exteriorização de ileostomias ou colostomias.
2. Lesões de Retroperitônio
- Zona 1 (central): Sempre explorada devido à proximidade com a aorta e veia cava e risco de lesões à estruturas centrais.
- Zona 2 (flancos): Apenas explorada se houver expansão do hematoma ou instabilidade.
- Zona 3 (pélvis): Geralmente não explorada, a menos que haja sangramento ativo.
Ressalta-se que os hematomas retroperitoneais costumam ser explorados quando uma tomografia computadorizada com contraste endovenoso não foi realizada antes da cirurgia.
3. Lesões de Vias Biliares ou Pancreáticas
Lesões hepáticas podem ser tratadas com hemostasia local. Já o pâncreas, se atingido, pode requerer drenagem ampla ou ressecção parcial.
A Importância do Planejamento Cirúrgico
O planejamento cirúrgico com base nos achados da TC permite uma abordagem mais precisa e focada. Em vez de explorar sistematicamente todas as regiões, o cirurgião concentra-se nas áreas de maior probabilidade de lesão, identificadas a partir do estudo do trajeto da lesão, reduzindo potenciais complicações e o tempo operatório.
Essa abordagem individualizada pode ser realizada com segurança em centros especializados a partir da análise minuciosa da tomografia computadorizada e da presença de uma equipe horizontal que avalie o tratamento desses pacientes de forma contínua.

Conclusões e Perspectivas Futuras
O manejo de FAF abdominal evoluiu significativamente com o uso da tomografia computadorizada e com a implementação de protocolos baseados em evidências. No entanto, a decisão entre intervenções cirúrgicas e estratégias não operatórias deve ser individualizada, considerando a estabilidade do paciente, a disponibilidade de recursos e a experiência da equipe.
No futuro, as pesquisas devem explorar o impacto de novas tecnologias, como inteligência artificial aplicada à tomografia, na predição de trajetos de projéteis e na otimização do manejo de traumas. Além disso, o desenvolvimento de biomarcadores para identificar lesões ocultas pode revolucionar o cuidado em traumas complexos.
Para residentes e jovens cirurgiões, dominar o manejo de FAF abdominal é uma competência essencial. O treinamento constante e a análise criteriosa de cada caso são fundamentais para oferecer o melhor cuidado possível e salvar vidas.
Referências
Sander A, Spence RT, McPherson D, et al.
Annals of Surgery. 2022;275(2):e527-e533. doi:10.1097/SLA.0000000000004045
Smyth L, Bendinelli C, Lee N, Reeds MG, Loh EJ, Amico F et al.
World J Emerg Surg. 2022 Mar 4;17(1):13. doi: 10.1186/s13017-022-00418-y.
Paula Ferrada, Alberto García, Juan Duchesne, Megan Brenner, Chang Liu, Carlos Ordóñez, Carlos Menegozzo, Juan Carlos Salamea, David Feliciano
World J Emerg Surg. 2024 Apr 25;19(1):15.
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