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Ressuscitação Hemostática: Um Debate Entre Transfusão Balanceada e Sangue Total.

  • PriMed
  • 28 de jun.
  • 6 min de leitura

Todo cirurgião de plantão conhece o cenário: um paciente de 30 anos, vítima de colisão auto-moto em alta velocidade, chega ao pronto-socorro. Glasgow 10, pálido, sudoreico, taquicárdico (140 bpm) e hipotenso (PA 70x40 mmHg). A resposta automática, por muito tempo, seria a infusão rápida e em grande volume de cristaloides. Mas hoje, a pergunta que define o desfecho é outra. E se essa abordagem clássica, que visava "encher o tanque", estivesse na verdade piorando a hemorragia e a coagulopatia, empurrando o paciente para um desfecho fatal?


Por décadas, a ressuscitação volêmica no trauma grave foi dominada pelo uso liberal de soluções cristaloides. A premissa era simples: restaurar o volume intravascular para normalizar a pressão arterial. Contudo, a prática baseada em evidências revelou que essa estratégia, embora intuitiva, pode ter consequências iatrogênicas devastadoras.


A Armadilha da Abordagem Clássica


O uso excessivo e não criterioso de cristaloides no choque hemorrágico precipita um ciclo vicioso de deterioração fisiológica. A infusão de grandes volumes de fluidos acelulares e sem fatores de coagulação causa uma coagulopatia dilucional, comprometendo a capacidade do sangue de formar um coágulo estável.


Além disso, a infusão de soro fisiológico pode induzir acidose metabólica hiperclorêmica, e a própria acidose, independentemente da causa, inibe criticamente a função das enzimas da cascata de coagulação. Se somarmos a hipotermia, frequentemente causada pela infusão de fluidos em temperatura ambiente, temos a clássica "Tríade Letal".


aciente com lesão traumática no braço recebendo soro intravenoso em ambiente hospitalar, representando o uso clássico de cristaloides na ressuscitação volêmica.
Ao perder sangue, o paciente vítima de trauma precisa de reposição volêmica com .... sangue! E não com solução cristalóides que podem piorar o desfecho clínico.

Mais recentemente, a hipocalcemia foi reconhecida como um quarto componente crítico, expandindo a tríade para o "Diamante Letal" (1,2). O citrato, presente como anticoagulante nas bolsas de hemoderivados, quela o cálcio ionizado, que é um cofator essencial em múltiplas etapas da coagulação. A diluição por cristaloides agrava ainda mais essa queda. A evidência é clara: o uso de grandes volumes de cristaloides está associado ao aumento da morbimortalidade, incluindo disfunção orgânica e síndrome compartimental abdominal (3).


A Revolução da Ressuscitação Hemostática (DCR): Uma Mudança de Paradigma Essencial


Diante dos malefícios do cristalóide, emergiu a Ressuscitação de Controle de Danos (DCR - Damage Control Resuscitation). A DCR não é apenas uma técnica, mas uma filosofia de manejo que evoluiu a partir das experiências militares e civis com hemorragias maciças. Seu objetivo é interromper o "diamante letal" e restaurar a hemostasia o mais rápido possível, antes que a coagulopatia se torne intratável.


A DCR é uma estratégia multifacetada que visa simultaneamente controlar a hemorragia, prevenir e tratar a coagulopatia e restaurar a perfusão de forma balanceada. Seus pilares fundamentais incluem:


  1. Hipotensão Permissiva: Manter a pressão arterial sistólica em níveis mais baixos (geralmente 80-90 mmHg) em pacientes sem lesão cerebral traumática grave, para evitar a disrupção de coágulos recém-formados pela pressão hidrostática e reduzir a perda sanguínea, até que o controle cirúrgico da hemorragia seja alcançado (4).

  2. Minimização do Uso de Cristaloides: Limitar rigorosamente a infusão de fluidos acelulares, utilizando-os apenas para manter a patência do acesso venoso ou como veículo para medicamentos, prevenindo a diluição e os distúrbios metabólicos.

  3. Ressuscitação Hemostática Precoce: Iniciar a transfusão de hemoderivados em proporções balanceadas ou sangue total o mais cedo possível, idealmente já na chegada ao pronto-socorro, substituindo o que o paciente está perdendo: sangue funcional.

  4. Controle Cirúrgico de Danos (Damage Control Surgery): A DCR é a parceira fisiológica da cirurgia de controle de danos. Esta abordagem cirúrgica abreviada foca no controle da hemorragia e da contaminação, postergando a reparação definitiva para um segundo momento, quando a fisiologia do paciente estiver mais estável.

  5. Prevenção e Correção do Diamante Letal: Monitorar e corrigir ativamente a hipotermia (com mantas térmicas e aquecedores de fluidos), acidose (limitando cristaloides e restaurando a perfusão), e hipocalcemia (com reposição de cálcio), que são inimigos diretos da coagulação. O uso de adjuvantes como o ácido tranexâmico, que demonstrou reduzir a mortalidade em pacientes com hemorragia no estudo CRASH-2, também é um pilar importante (10).


O Arsenal Moderno: Estratégias de Reposição Sanguínea


A essência da DCR é repor o que o paciente está perdendo. As estratégias atuais se dividem em duas abordagens principais, ambas focadas em fornecer os componentes sanguíneos necessários para a hemostasia.


1. Transfusão Balanceada (Componentoterapia)


A ideia por trás da componentoterapia balanceada é mimetizar o sangue total perdido, repondo concentrado de hemácias (CH), plasma fresco congelado (PFC) e plaquetas.

  • O Estudo PROMMTT: O estudo observacional prospectivo PROMMTT foi um dos primeiros a sugerir o benefício de altas proporções de plasma e plaquetas para hemácias. Ele demonstrou que pacientes que receberam PFC e plaquetas mais cedo e em maiores proporções apresentavam menor mortalidade nas primeiras horas após o trauma (5).

  • O Marco PROPPR: O divisor de águas foi o ensaio clínico randomizado PROPPR, que comparou a proporção 1:1:1 (PFC:Plaquetas:CH) com 1:1:2 (6). O resultado principal não mostrou diferença estatisticamente significativa na mortalidade geral em 24 horas ou 30 dias. No entanto, a "malícia de campo" ao analisar o estudo revela achados secundários cruciais: o grupo 1:1:1 apresentou maior hemostasia e menor mortalidade por exanguinação nas primeiras 24 horas (6,7). Isso significa que, embora a mortalidade geral não tenha sido diferente, a capacidade de controlar o sangramento foi superior no grupo 1:1:1, levando à sua ampla adoção como padrão-ouro em protocolos de transfusão maciça.

  • O Papel dos Testes Viscoelásticos: Para guiar a componentoterapia de forma mais precisa, os testes viscoelásticos como a Tromboelastografia (TEG) e a Tromboelastometria Rotacional (ROTEM) tornaram-se ferramentas indispensáveis. Eles fornecem uma avaliação global e em tempo real da coagulação, permitindo a identificação de deficiências específicas (ex: fibrinogênio, plaquetas, fatores) e a administração direcionada de hemoderivados ou concentrados de fatores, otimizando o uso dos recursos e evitando transfusões desnecessárias (9).


2. Sangue Total (Whole Blood - WB): O Retorno ao Futuro?


O interesse no sangue total tem ressurgido com força. Suas vantagens potenciais são:


  • Fisiológicas: Contém todos os componentes em suas proporções naturais. As plaquetas são consideradas mais funcionais, e a carga de citrato por unidade de hemácias é menor, o que pode atenuar a hipocalcemia transfusional.

  • Logísticas: A simplicidade de ter um único produto para infundir é uma vantagem significativa em ambientes caóticos. Reduz o tempo de preparação, o número de bolsas e o potencial de erros.


Revisões sistemáticas e meta-análises recentes comparando sangue total com componentoterapia mostram, em geral, não inferioridade na mortalidade. Alguns estudos sugerem menor volume total transfundido e melhora em desfechos secundários (8,12). Apesar das vantagens, a implementação do sangue total de doadores com baixo título de anticorpos anti-A e anti-B (LTOWB - Low Titer O Whole Blood) enfrenta barreiras logísticas, de custo e regulatórias em muitos sistemas de saúde (11).


Conclusão e Visão Futura


A ressuscitação do choque hemorrágico no trauma evoluiu, abandonando o uso liberal de cristaloides em favor de uma abordagem hemostática precoce e balanceada. Enquanto a transfusão balanceada 1:1:1 é o padrão-ouro atual, fundamentado por evidências robustas, o sangue total se firma como uma alternativa promissora. A mensagem final é clara: o cirurgião deve dominar as evidências, mas aplicar o raciocínio clínico e a "malícia de campo" para individualizar o tratamento, considerando os recursos disponíveis e utilizando ferramentas como os testes viscoelásticos para guiar a terapia de forma cada vez mais precisa.



Referências

  1. Ditzel RM, Anderson JL, Eisenhart WJ, et al. A review of transfusion- and trauma-induced hypocalcemia: Is it time to change the lethal triad to the lethal diamond? J Trauma Acute Care Surg. 2020;88(3):434-9.

  2. Wray JP, Bridwell RE, Schauer SG, et al. The diamond of death: Hypocalcemia in trauma and resuscitation. Am J Emerg Med. 2021;41:104-9.

  3. Ley EJ, Clond MA, Srour MK, et al. Emergency department crystalloid resuscitation of 1.5 L or more is associated with increased mortality in elderly and nonelderly trauma patients. J Trauma. 2011;70(2):398-400.

  4. Cannon JW, Khan MA, Raja AS, et al. Damage control resuscitation in patients with severe traumatic hemorrhage: a practice management guideline from the Eastern Association for the Surgery of Trauma. J Trauma Acute Care Surg. 2017;82(3):605-17.

  5. Holcomb JB, del Junco DJ, Fox EE, et al. The prospective, observational, multicenter, major trauma transfusion (PROMMTT) study: comparative effectiveness of a time-varying treatment with competing risks. JAMA Surg. 2013;148(2):127-36.

  6. Holcomb JB, Tilley BC, Baraniuk S, et al. Transfusion of plasma, platelets, and red blood cells in a 1:1:1 vs a 1:1:2 ratio and mortality in patients with severe trauma: the PROPPR randomized clinical trial. JAMA. 2015;313(5):471-82.

  7. Cardenas JC, Zhang X, Fox EE, et al. Platelet transfusions improve hemostasis and survival in a substudy of the prospective, randomized PROPPR trial. Blood Adv. 2018;2(14):1696-704.

  8. Crowe E, DeSantis SM, Bonnette A, et al. Whole blood transfusion versus component therapy in trauma resuscitation: a systematic review and meta-analysis. J Am Coll Emerg Physicians Open. 2020;1(2):633-41.

  9. Schochl H, Solomon C, Trauner M, et al. Viscoelastic monitoring of coagulation in trauma patients: an update. Curr Opin Anaesthesiol. 2019;32(2):239-46.

  10. The CRASH-2 Trial Collaborators. Effects of tranexamic acid on death, vascular occlusive events, and transfusion requirement in trauma patients with significant haemorrhage: a randomised, placebo-controlled trial. Lancet. 2010;376(9734):23-32.

  11. Spinella PC, Perkins JG, Grathwohl KW, et al. Effect of plasma-to-red blood cell ratio on mortality in trauma patients receiving massive transfusions. Ann Surg. 2008;248(3):447-55.

  12. Nunez TC, Young PP, Holcomb JB, et al. A comparison of whole blood versus component therapy in severely injured trauma patients. J Trauma Acute Care Surg. 2016;80(6):976-83.

 
 
 

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