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Viés cognitivos: caindo na nossa própria armadilha

  • PriMed
  • 15 de mar.
  • 6 min de leitura

Atualizado: 17 de abr.

 Introdução

 

O cérebro humano é frequentemente descrito como um sistema complexo, capaz de alternar entre modos de raciocínio mais rápidos (intuitivos) e mais lentos (analíticos). Essa versatilidade é fundamental para a prática médica, pois permite ao cirurgião realizar diagnósticos e tomar decisões de forma ágil em situações de urgência.


Porém, a mesma capacidade de “economia de energia” pode levar a erros sistemáticos, conhecidos como vieses cognitivos. A seguir, discutimos três desses vieses – ancoragem, disponibilidade e comissão – ilustrando como podem afetar o dia a dia de quem atua em cirurgia e áreas correlatas.


Para a maioria dos cirurgiões gerais, a tomada de decisão rápida é parte essencial da rotina. Emergências como abdômen agudo, diagnósticos incertos e pressões externas podem induzir julgamentos automáticos, muitas vezes inconscientes.


Quando o cérebro “pega atalhos” para acelerar a resolução de problemas, ele corre o risco de incorrer em vieses cognitivos – distorções de pensamento que podem prejudicar o cuidado ao paciente.



Conceito de viés cognitivo

 

médico de costas olhando para ambulâncias
Sem tomar os devidos cuidados, podemos ser a próxima vítima.

O termo “viés cognitivo” refere-se a desvios sistemáticos no processamento de informações. Em Medicina, isso se manifesta quando o profissional ignora dados relevantes ou prioriza indevidamente certos aspectos do caso, acarretando conclusões equivocadas. Embora saber que o viés existe não garanta sua eliminação, essa consciência possibilita reconhecer o erro mais rapidamente e, principalmente, discuti-lo com a equipe de forma construtiva, evitando uma cultura de culpa individualizada.

 

“Uma vida sem reflexão não vale a pena ser vivida.” — Sócrates

 





Viés de ancoragem

 

O viés de ancoragem consiste em permanecer fixado em um diagnóstico inicial, mesmo quando surgem novas informações que deveriam reorientar o raciocínio clínico. Em cenários de pronto-socorro ou avaliação de urgência, é comum o cirurgião estabelecer uma impressão inicial com base em sintomas predominantes e nos poucos dados disponíveis naquele momento. Se o quadro clínico muda ou se novos exames apontam para outra direção, o profissional pode, ainda assim, desconsiderar ou subvalorizar esses achados, persistindo em sua “âncora” diagnóstica.


Um exemplo típico ocorre quando o paciente apresenta dor epigástrica intensa, com aumento discreto de amilase. É natural que a primeira hipótese seja pancreatite aguda, principalmente se o cirurgião estiver acostumado a atender quadros semelhantes. Porém, a insistência nesse diagnóstico pode levar à negligência de sinais de doenças graves, como dissecção de aorta ou úlcera perfurada, cujo manejo difere radicalmente do proposto para pancreatite. Em outras palavras, no momento em que um sinal de alerta aparece – por exemplo, uma massa pulsátil ao exame físico ou uma piora rápida e inexplicável no estado geral –, a revisão do caso pode ser atrasada se o viés de ancoragem estiver “bloqueando” a percepção de outras possibilidades.


Para reduzir o impacto desse viés, é fundamental valorizar o dinamismo da prática médica. No dia a dia, isso significa reavaliar periodicamente o paciente à luz dos novos exames laboratoriais e de imagem, além de se manter atento à evolução clínica. Outra estratégia essencial é buscar a opinião de alguém não envolvido na condução do caso, seja um colega cirurgião, seja um especialista de outra área. Esse profissional trará uma perspectiva mais neutra, já que não está “preso” ao diagnóstico inicial. Revisitar sistematicamente o prontuário e questionar a hipótese formulada desde o início também são recursos importantes.


Perguntas como “O que mais pode explicar este sintoma?” ou “Será que posso estar ignorando um dado clínico relevante?” funcionam como freios e evitam que o cirurgião atue no ‘piloto automático’.


Em resumo, o viés de ancoragem, embora frequente e quase inevitável, pode ser mitigado por uma postura crítica e reflexiva. A capacidade de “desconfiar” do próprio raciocínio inicial e de acolher visões diferentes não apenas enriquece o diagnóstico, mas também promove uma prática cirúrgica mais segura e com maior respaldo em evidências.

 

Viés de disponibilidade

 

O viés de disponibilidade ocorre quando o médico superestima a probabilidade de um diagnóstico que está mais “fresco” em sua memória. Essa facilidade de evocação pode ter diversas origens: leituras recentes, casos recém-discutidos em reuniões clínicas ou experiências de forte impacto emocional. Assim, se durante a semana o cirurgião tratou dois casos graves de colecistite, ele tende a “enxergar” colecistite em praticamente todo paciente que apresente dor em hipocôndrio direito, mesmo que a probabilidade real seja menor.


A raiz desse fenômeno está no fato de o cérebro humano, em busca de eficiência, dar mais peso a informações rapidamente acessíveis. Se algo se repete em um intervalo curto de tempo ou provoca grande impressão na mente do profissional, torna-se um “atalho” mental para a interpretação de novos casos. O problema é que esse caminho rápido pode negligenciar outras possibilidades diagnósticas igualmente plausíveis ou até mais prováveis em função de fatores epidemiológicos ou dados clínicos.


Para contornar o viés de disponibilidade, duas estratégias se mostram particularmente eficazes. A primeira é manter uma abordagem sistematizada na avaliação clínica, seguindo algoritmos ou checklists que ajudem a cobrir hipóteses alternativas. Em vez de se limitar à imagem mental imediata, o cirurgião revisita perguntas essenciais, como “O paciente exibe sinais de defesa ou rigidez localizada? Existem alterações laboratoriais compatíveis com outro quadro? Há fatores de risco para doenças diferentes de colecistite?”. Essa espécie de “contrabalanço” afasta a tendência de focar somente em diagnósticos recentes.


A segunda estratégia é promover discussões em equipe multidisciplinar ou consultar colegas de outras áreas, sobretudo em casos de apresentação clínica atípica. Um gastroenterologista ou radiologista, por exemplo, pode trazer insights menos enviesados, pois não está influenciado pelo histórico imediato de casos cirúrgicos de colecistite. Essa troca de opiniões também estimula uma cultura de questionamento, na qual a equipe analisa detalhadamente cada paciente, lembrando-se de que a realidade clínica é ampla e diversa.


Em síntese, o viés de disponibilidade demonstra como uma sequência de casos semelhantes – ou mesmo uma leitura marcante – pode levar o cirurgião a acreditar que encontrou “mais um” problema idêntico. Reconhecer essa inclinação natural e estabelecer rotinas de verificação diagnóstica são recursos indispensáveis para manter a precisão e a segurança na prática cirúrgica.

 



Viés de comissão

 

O viés de comissão descreve a propensão de “fazer algo a mais” ao invés de adotar condutas de simples observação ou suporte clínico. Em muitos casos, a decisão de intervir está mais ligada ao receio de parecer inativo ou omisso do que à real necessidade terapêutica. Isso se torna especialmente evidente quando o paciente ou o familiar manifesta grande expectativa em relação ao tratamento ou quando se trata de alguém considerado VIP — seja por posição social, hierárquica ou laços afetivos com a equipe médica. Nesses cenários, surge a sensação de “não estar fazendo o suficiente”, que pode levar a cirurgias, exames ou prescrições sem indicação sólida, aumentando o risco de iatrogenias.


Um exemplo comum é o uso indiscriminado de antibióticos em inflamações leves ou suspeitas pouco claras. Por não querer deixar o paciente sem “nenhum tratamento”, o cirurgião pode iniciar um esquema medicamentoso que, em última análise, não ofereceria benefício relevante — mas poderia selecionar bactérias resistentes ou desencadear efeitos adversos. Outro caso frequente ocorre quando há pressão de familiares para “fazer todos os exames possíveis”, mesmo que a conduta adequada fosse aguardar a evolução clínica ou repetir uma avaliação simples em outro momento.


A melhor forma de combater o viés de comissão é estruturar a tomada de decisão com base em protocolos institucionais e evidências científicas. Em vez de prescrever ou operar “para preencher espaço”, o cirurgião deve avaliar cuidadosamente o balanço entre benefícios e riscos de qualquer ação. Uma estratégia complementar é envolver o paciente em discussões honestas, explicando não apenas as vantagens, mas também as possíveis complicações de procedimentos que, à primeira vista, pareçam inofensivos ou “preventivos”. Esse diálogo transparente reforça a confiança na equipe médica e ajuda o paciente a entender que, muitas vezes, o “não fazer” é, na realidade, o melhor a ser feito.

 

Conclusão

 

Os vieses cognitivos permeiam a prática cirúrgica e podem comprometer a segurança do paciente se não forem reconhecidos. Entender suas definições, refletir sobre casos passados e fomentar a discussão coletiva são estratégias fundamentais para aprimorar o raciocínio clínico. Ainda que a ciência não comprove uma redução imediata dos erros apenas pelo conhecimento dos vieses, o simples fato de saber que eles existem já favorece um ambiente de trabalho mais colaborativo, reflexivo e aberto à melhoria contínua.

 

Referência bibliográfica

Kahneman D. Rápido e devagar: duas formas de pensar. Rio de Janeiro: Objetiva; 2012.https://amzn.to/41m3J0O

 

 
 
 

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