Sobrevivendo à arena: as regras de comunicação não escritas da residência médica
- PriMed
- 6 de dez.
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O campo de batalha silencioso da residência médica
Alta pressão, hierarquia rígida, plantões intermináveis e uma competição velada que raramente é dita em voz alta. Se esse cenário soa familiar, você sabe que a residência médica é tanto um teste de conhecimento técnico quanto de resiliência emocional. Os conflitos, grandes e pequenos, são inevitáveis. Mas e se as melhores estratégias para navegar nesse campo de batalha não estivessem nos livros de cirurgia, mas sim na forma como nos comunicamos? Este artigo revela táticas de comunicação na residência médica surpreendentes e eficazes para resolver os atritos mais comuns da residência, extraídas de uma conversa franca entre cirurgiões experientes no podcast "Mania de Cirurgia". O que torna esta conversa tão valiosa é como as táticas de sobrevivência dos cirurgiões, forjadas na prática, alinham-se perfeitamente com princípios fundamentais da comunicação de alta performance e segurança psicológica.
Takeaway 1: O antídoto para a liderança tóxica não é a submissão, é a "comunicação fechada".
O Cenário do Conflito
Imagine a cena, tão comum no pronto-socorro: um residente mais velho (R+), sobrecarregado, vira para o residente mais novo (R-) e dispara uma ordem genérica e agressiva: "Pede tudo que tem que pedir e prepara o paciente pra cirurgia". O R- corre para cumprir a ordem, mas no momento da cirurgia, o anestesista pergunta por um exame específico, como o RNI, que foi esquecido. Inevitavelmente, o R+ volta com um sermão sobre como "na minha época isso não era assim", gerando um clima péssimo e atrasando o procedimento. Essa dinâmica, além de tóxica, é perigosamente ineficiente.
A estratégia surpreendente: feche a alça da comunicação
A solução para esse ciclo de ordens vagas e críticas posteriores é uma técnica simples: "fechar a alça" da comunicação. Em vez de simplesmente acatar a ordem, o residente mais novo deve verbalizar e confirmar cada passo do que entendeu. A resposta à ordem vaga "pede tudo" deveria ser:
"Ok, só para confirmar, 'pedir tudo' que você está me falando é: eu vou pedir um raio-x de tórax, vou pedir um elétro, laboratório completo com coagulograma... esqueci de algo?".
O R+, agora obrigado a ser específico, completa: "Isso. E não esquece do RNI." Erro evitado. Responsabilidade transferida.
Por que isso funciona?
Muitos residentes temem que confirmar uma ordem os faça parecer inseguros ou lentos. Na verdade, o efeito é o oposto. Essa atitude demonstra proatividade, responsabilidade e um compromisso com a segurança do paciente. Do ponto de vista da inteligência emocional, essa abordagem "transparente e honesta" faz mais do que prevenir erros: ela sinaliza vulnerabilidade de uma forma construtiva, o que pode desarmar um líder tóxico e construir confiança. Acima de tudo, ela transfere a responsabilidade da clareza da comunicação de volta para quem deu a ordem. Você não está questionando a autoridade, está garantindo a execução correta da tarefa.
"[...] é a minoria das pessoas que vai achar ruim isso aí ou vai pensar mal de você. E se essa pessoa pensar mal de você, o problema tá com ela, não tá com você, porque você só tá fazendo seu papel, que é confirmando que [...] você tá querendo seguir as orientações que foram dadas, né?"

Takeaway 2: Para evitar a "guerra" por procedimentos, defina as regras do jogo antes do início.
O cenário do conflito
Dois residentes do mesmo ano rodando juntos no mesmo estágio. Logo surge a competição por procedimentos. A discussão quase sempre se torna numérica ("eu fiz duas hérnias e fiz uma vesícula. Você fez duas vesículas e uma hérnia, então a próxima é minha") ou se baseia em argumentos subjetivos como "eu que preparei o caso, fiquei até mais tarde". O resultado é uma rivalidade constante, um clima ruim na equipe e a energia focada na competição, e não na colaboração e aprendizado.
A estratégia mais simples: o combinado não sai caro
A abordagem mais eficaz é também a mais simples: a prevenção. No "dia zero" do estágio, antes que qualquer conflito apareça, os residentes devem sentar e definir as regras do jogo. As possibilidades são muitas e devem ser acordadas em conjunto, com clareza sobre suas implicações:
A divisão será "um para cada um"? Simples e direto, mas pode parecer injusto se os casos tiverem complexidades muito diferentes.
A contagem de procedimentos será "pele a pele"? Ideal para garantir que a experiência seja completa (do início ao fim), mas pode gerar conflito em casos longos onde há muita troca.
Antever o cenário e estabelecer um acordo claro desde o início elimina 90% dos futuros desentendimentos.
A regra de ouro: nunca fale mal do seu colega
Em um momento de frustração, pode ser tentador desabafar ou criticar seu colega para um superior, na esperança de "ganhar pontos". Essa é uma armadilha. A percepção do chefe quase nunca é a que você espera. Em vez de validar sua crítica, ele provavelmente pensará que você não sabe trabalhar em equipe, que "está perdendo a mão".
Mas há uma contraestratégia mais sutil e poderosa: a crítica por contraste. Como um dos cirurgiões aponta, "uma maneira de você falar mal de uma pessoa [é] falar muito bem da outra". Em vez de reclamar da falta de compromisso do seu colega, enalteça a dedicação de um terceiro: "Doutor, admiro como o fulano sempre fica até mais tarde para garantir que tudo está perfeito". Essa tática, politicamente astuta, sinaliza a deficiência de um parceiro problemático de forma indireta, destacando o padrão que você valoriza sem parecer um delator.
"A coisa mais sensata para se fazer, na verdade, é a mais simples, que é você já de uma certa maneira antever o seu cenário... Nada mais justo do que você sentar e discutir."
Takeaway 3: Em um ambiente hostil, a sua melhor arma é a forma como você pergunta e responde.
O cenário do conflito
O cirurgião sênior "ogro", "truculento" e impaciente. Sua presença no centro cirúrgico cria um ambiente de medo e silêncio. Ninguém se atreve a tirar uma dúvida, apontar um possível erro ou dar uma sugestão. Esse comportamento não apenas destrói o aprendizado, mas coloca a segurança do paciente em risco. Como um dos médicos no podcast ressalta, o principal prejudicado é o próprio líder: "já aconteceu comigo mais de uma vez de eu estar operando com o residente e o residente perceber alguma coisa que eu não tinha visto... quem seria prejudicado no final mesmo, né?". O silêncio da equipe é uma ameaça direta à performance do cirurgião e à vida do paciente.
A estratégia de defesa e ataque: raciocínio explícito e perguntas inteligentes
Para navegar nesse ambiente, é preciso ter uma estratégia dupla, tanto para quem pergunta quanto para quem responde.
Para o mais novo: Verbalize seu raciocínio. Ao invés de jogar uma sugestão solta no ar como "E se a gente fizesse X?", que pode ser facilmente descartada, estruture sua fala para mostrar que há um processo de pensamento por trás. Tente: "Estou pensando em fazer X por causa de Y e Z, que vi no pré-operatório. O que o senhor acha?". Isso transforma uma simples pergunta em uma demonstração de raciocínio clínico, tornando o sênior muito mais receptivo a ouvir.
Para o líder (e para o mais novo entender a mente do bom líder): Troque o "Por quê?". A palavra "Porquê?" instintivamente ativa um mecanismo de defesa. Uma pergunta como "Por que você pensou nisso?" soa como uma acusação. Um líder eficaz reformula a questão para convidar ao diálogo: "Me explica melhor como você chegou nessa conclusão". A intenção é a mesma, mas a formulação muda completamente a dinâmica da conversa, de confronto para colaboração.
"Você precisa criar um ambiente que existe uma certa limitação pro que a pessoa pode fazer, mas não pode ter limite pro que a pessoa pode falar."
Conclusão: a habilidade mais importante que não está nos livros
No final das contas, as estratégias discutidas transcendem a mera "gestão de conflitos". Elas são um manual para a construção de segurança psicológica – a base para equipes de elite em qualquer campo, especialmente na medicina. Fechar a alça da comunicação, definir as regras do jogo e verbalizar o raciocínio não são apenas táticas de defesa; são atos de liderança que redesenham a dinâmica de poder e colocam a segurança do paciente e o aprendizado colaborativo no centro de tudo. A transição de uma comunicação reativa, baseada no medo, para uma comunicação proativa, baseada na clareza e na responsabilidade mútua, é a habilidade mais importante que não se aprende nos livros.
Além dessas, que outra 'regra não escrita' da residência você acredita que todos deveriam conhecer?
Assista nosso vídeo no youtube: Conflitos entre residentes de cirurgia
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