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Vieses Cognitivos na Prática Cirúrgica: Parte 2

  • PriMed
  • há 7 dias
  • 4 min de leitura

 

Os vieses cognitivos na prática cirúrgica influenciam significativamente tomada de decisões na prática cirurgia, podendo levar a erros diagnósticos e condutas inadequadas. Este texto aborda três vieses comuns — viés de confirmação, erro de atribuição fundamental e viés de retrospecção, apresentando definições, exemplos práticos, impactos e estratégias para mitigá-los.

 

Principais vieses cognitivos na prática cirúrgica:


Viés de Confirmação

 

Definição


O viés de confirmação caracteriza-se pela tendência de buscar, interpretar ou priorizar informações que corroboram a hipótese inicial, enquanto evidências contrárias são ignoradas ou minimizadas. Por exemplo, ao suspeitar de apendicite aguda, um cirurgião pode enfatizar a dor no quadrante inferior direito, mas desconsiderar a ausência de febre ou leucocitose, justificando que “nem toda apendicite apresenta esses achados”.

 

Exemplos Práticos


  • Cirurgiões intervencionistas podem selecionar dados que justifiquem a indicação cirúrgica, enquanto os mais conservadores priorizam informações que a evitem.

  • Em um caso, um cirurgião realizou uma pancreatectomia paliativa em doença pancreática avançada, utilizando artigos retrospectivos e relatos de caso para embasar a conduta, criando um “ecossistema” de evidências favoráveis.

 

Impactos


Esse viés pode levar a decisões equivocadas, especialmente quando o profissional mais experiente ou hierarquicamente superior está influenciado, dificultando questionamentos por parte de residentes ou internos. A prática de forçar o paciente a “encaixar” no diagnóstico inicial, em vez de ajustar o diagnóstico ao paciente, aumenta o risco de erros, como operar com base em uma suspeita incorreta.

 

Estratégias para Mitigação


  1. Elaborar diagnósticos diferenciais: Criar, de forma rotineira, uma lista de hipóteses alternativas para confrontar a suspeita inicial.

  2. Utilizar protocolos e escores clínicos: Converter achados subjetivos em dados objetivos, como o escore de Alvarado para apendicite, reduzindo a subjetividade.

  3. Consultar colegas: Discutir o caso com profissionais externos ao contexto para obter perspectivas imparciais.

  4. Praticar metacognição: Refletir sobre o próprio raciocínio, questionando se há influência do viés de confirmação.

 

Um cuidado importante é evitar a paralisia decisória decorrente de excesso de análise. Considerar pelo menos três hipóteses diagnósticas e simular cenários alternativos (e.g., “se a tomografia não confirmar apendicite, qual será a próxima hipótese?”) ajuda a preparar o profissional para resultados inesperados.

 

Erro de Atribuição Fundamental

 

Definição


O erro de atribuição fundamental ocorre quando problemas clínicos são atribuídos a comportamentos ou características do paciente, em vez de causas médicas. Um exemplo comum é classificar uma dor torácica como “psicotrópica” sem exame adequado, descobrindo posteriormente um pneumotórax.

 

Exemplos Práticos


  • Atribuir uma hérnia incisional ao paciente por “não fazer repouso”, ignorando falhas técnicas, como a ausência de small bites ou tela profilática.

  • Culpar um intensivista por “excesso de volume” em uma deiscência de anastomose, quando a técnica cirúrgica foi inadequada.

  • Em um caso público, queixas familiares sobre o agravamento de uma paciente foram desconsideradas como “exageradas”, resultando em uma complicação fatal por trombose.

 

Impactos


Esse viés é mais prevalente em pacientes psiquiátricos, pediátricos (culpando mães “ansiosas”) ou em contextos culturais onde admitir erros é menos comum. A dificuldade em reconhecer falhas técnicas leva à atribuição de culpa a fatores externos, como o comportamento do paciente. Além disso, pacientes podem se autoculpar (e.g., “fistulizei porque engoli um chiclete”), reforçando o viés.


Estratégias para Mitigação


  1. Adotar uma perspectiva de contribuição: Em vez de buscar culpados, identificar fatores que contribuíram para o desfecho, como técnica inadequada ou estado nutricional do paciente.

  2. Comunicar riscos no pré-operatório: Informar que complicações podem ocorrer independentemente das ações do paciente, reduzindo a culpa mútua.

  3. Basear-se em evidências científicas: Consultar a literatura para evitar atribuir problemas a fatores sem comprovação, como culpar complicações por “subir escadas”.

  4. Desconstruir mitos: Esclarecer equívocos, como associar infecções hospitalares a “enfermeiros sem luvas”, tanto para pacientes quanto para familiares.

 

 

Profissionais de saúde em ambiente hospitalar revendo um caso clínico com expressões críticas e reflexivas. Representa o viés de retrospecção, que torna o desfecho aparentemente óbvio após o fato ocorrido.

Viés de Retrospecção


Definição


O viés de retrospecção, conhecido como “cirurgião do dia seguinte”, manifesta-se quando, após conhecer o desfecho de um caso, o profissional acredita que o diagnóstico ou a conduta eram óbvios no momento da avaliação, ignorando a incerteza enfrentada durante a decisão.

 

Exemplos Práticos


  • Criticar um colega por “não ter identificado” um achado em tomografia ou por “não prever” uma complicação, como a deiscência de uma anastomose, em um contexto clínico complexo.

  • Em um caso famoso, o piloto Sully pousou um avião no rio Hudson devido à falha dos motores. No julgamento, questionou-se por que ele não voltou ao aeroporto, desconsiderando a incerteza e as limitações do momento.

  • Em reuniões acadêmicas, a apresentação de casos clínicos pode omitir informações que geravam confusão, facilitando críticas retrospectivas.

 

Impactos


Esse viés é frequente em discussões clínicas, onde profissionais que não vivenciaram o contexto (“cirurgiões de poltrona”) emitem julgamentos. Na emergência, onde decisões são tomadas com informações limitadas, esse viés prejudica emergencistas e cirurgiões de plantão, que enfrentam cenários de alta incerteza. A crítica retrospectiva inibe o aprendizado e dificulta discussões construtivas.

 

Estratégias para Mitigação


  1. Priorizar diagnósticos sindrômicos: Trabalhar com síndromes amplas (e.g., choque) em vez de etiologias específicas, mantendo um leque de possibilidades.

  2. Documentar a incerteza: Registrar em prontuário as hipóteses e suas limitações, protegendo contra críticas retrospectivas.

  3. Realizar debriefings:

    • Debriefing quente: Imediato, focado em emoções e problemas principais, envolvendo a equipe que vivenciou o caso.

    • Debriefing frio: Após alguns dias, para análise sistemática em reuniões de morbimortalidade, identificando erros pontuais e sistemáticos.

  4. Utilizar simulações: Criar cenários simulados para recriar a incerteza, permitindo avaliar decisões em contextos realistas.

 

O debriefing é uma ferramenta poderosa para identificar erros sistemáticos e descartar eventos pontuais inevitáveis. Sua subutilização reflete uma lacuna na cultura médica, que muitas vezes prioriza a culpa em vez da melhoria contínua.

 

Conclusão


Os vieses cognitivos, como o de confirmação, o erro de atribuição fundamental e o de retrospecção, afetam profissionais de todos os níveis de experiência, comprometendo a segurança do paciente. Mitigá-los exige autocrítica, colaboração em equipe, uso de evidências científicas e práticas como o debriefing. A adoção de diagnósticos diferenciais, documentação da incerteza e comunicação clara com pacientes e colegas são passos essenciais para decisões mais seguras e éticas na prática cirúrgica.

 
 
 

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